A Privatização da Água: o desastre anunciado Prof. Dr. Ricardo F. Rabelo
No dia 26 de Junho, o Senado votou o Projeto de Lei (PL) 4162 , que
trata do novo marco regulatório do Saneamento e foi apresentado pela
imprensa como a solução para os problemas existentes . Os argumentos
para as mudanças no setor de saneamento e água seriam pelo menos dois:
a péssima situação da oferta de serviços básicos como oferta de água
encanada e de esgotamento sanitário e a incompetência do Estado
em cumprir esse papel. A solução seria a entrada de empresas privadas
no setor de forma mais incisiva, porque já há experiências de
privatização no setor. A atuação das empresas privadas , no
entanto, tem sido uma péssima experiência, como em Manaus e
Tocantins.
Nessas duas cidades tem-se dois exemplos marcantes que apontam
para o desastre que pode significar a privatização do saneamento básico
e da água:
Manaus – os serviços de saneamento básico estão sob controle de uma
empresa privada há cerca de 20 anos. A tarifa de água paga em
Manaus é a de maior valor entre as capitais da Região Norte e a 5ª mais
cara do país, de acordo com relatório de pesquisa da PUC-RJ
(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Essa tarifa
de água, associada a uma injustificada tarifa de esgoto (100% do valor
da água consumida), proporcionou para a empresa uma arrecadação de R$
1.676,74 bilhão nos últimos 5 anos enquanto o investimento realizado
foi somente de R$ 311,44 milhões ao longo do mesmo período (Instituto
TrataBrasil)A pesquisa da PUC-RJ indicou que o lucro da
concessionária Manaus Ambiental, que foi substituída pela Aegea
Saneamento( com participação minoritária pelo Fundo Soberano de
Cingapura e Banco Mundial) em março de 2018, subiu de R$ 8,9 milhões em
2011 para R$ 42,4 milhões em 2017.(*) Esse processo de privatização tem
gerado grande insatisfação na população, o que é demonstrado pela
evolução histórica dos dados divulgados pelos Procons (estadual e
municipal) e os índices da Comissão de Defesa do Consumidor da
Assembleia Legislativa.
Pode-se identificar uma revolta dos usuários o que levou à instalação
de duas CPIs pela Câmara Municipal de Manaus, em 2005 e 2012, que
recomendaram a quebra do contrato de concessão. Nestas duas décadas foi
constatada uma total precariedade dos serviços privados na
cidade, o que levou à instauração do estado de calamidade pública nas
zonas periféricas da cidade em 2006, e numa onda de
protestos públicos e processos judiciais contra a empresa. Os últimos
dados fornecidos pelo Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento
(SNIS 2018) ajudam a iluminar o cenário indicando que a cobertura de
abastecimento de água de Manaus alcança somente 91% da população. Tal
indicador, mesmo assim, não corresponde à realidade. Como se sabe, a
maioria dos domicílios da cidade (53,38%) está localizada em áreas de
habitação subnormal (palafitas, ocupações e assentamentos), sinalizando
que grande parte da população manauara está fora do sistema de
abastecimento de água e outras significativas parcelas usufruem de um
serviço precário. Por outro lado, somente 12,4% da população da capital
do Amazonas é atendida pela coleta de esgoto. A cidade é também uma das
capitais com menor média de investimentos no setor.
Apesar dos fracassos em Manaus, em outubro de 2019, a Aegea
Saneamento venceu a Concorrência Internacional nº001/2019
promovida pela Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) para atuar
em acordo de Parceria Público-Privada (PPP). A licitação prevê a
concessão administrativa para a execução de obras de infraestrutura em
esgotamento sanitário, melhorias, manutenção e operação dos sistemas,
bem como a realização de programas comerciais em gestão do parque de
hidrômetros e a correção de irregularidades. A parceria atenderá 9
cidades do Rio Grande do Sul – Alvorada, Cachoeirinha, Canoas, Eldorado
do Sul, Esteio, Gravataí, Guaíba, Sapucaia do Sul e Viamão, municípios
da região metropolitana de Porto Alegre, com população de mais de 1,5
milhões de pessoas .
Tocantins – Foi pioneiro ao privatizar sua Companhia Estadual de Água e
Esgoto, a Saneatins. A privatização iniciou-se em 1998, com
investimento de 30% efetuado na estatal pela Empresa
Sul-Americana de Montagens (Emsa), grupo de Goiás, que passou a deter o
controle da empresa em 2002. Em 2011, a Saneatins passou para a
Odebrecht Ambiental (hoje BRK Ambiental, controlada pela Brookfield
Asset Management, um fundo de investimentos canadense.
Em 2010, para enfrentar as constantes reclamações populares contra
o serviço oferecido, o governo estadual criou uma autarquia , a
Agência Tocantinense de Saneamento – ATS uma empresa pública para
substituir, se solicitado, a Saneatins privada.
O resultado foi que, dos 125 municípios atendidos pela Saneatins, 78
deles migraram para a ATS, ficando a Saneatins com 47 municípios,
incluindo os com maior densidade demográfica, portanto com também maior
capacidade de geração de receitas.
Fonte: Privatização de Companhia Estadual de Saneamento : A Experiência
Única do Tocantins – Lições para Novos Arranjos com a Iniciativa
Privada
O estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), Privatização de
Companhia Estadual de Saneamento : A Experiência Única do Tocantins –
Lições para Novos Arranjos com a Iniciativa Privada, mostra que os
serviços da empresa privada não apresentaram uma eficiência ótima como
pregado pelos defensores do processo. A população atendida por
rede de água era de 65% em 1998, tendo evoluído para 73%, em
2010, e 83% em 2015. Em 16 anos, portanto, a universalização do
serviços não foi atingida, sendo que no serviço de esgoto a situação é
ainda pior, pois chegou a apenas 32% nos 48 municípios sob
responsabilidade da Saneatins.
Somente quatro municípios, os que superam 50 mil habitantes,
conseguiram alterar os contratos com a Saneatins no período entre 1999
e 2014: Palmas, Araguaína, Gurupi e Porto Nacional.
Na capital, Palmas, houve uma grande renegociação em 2013, porque
a Saneatins necessitava do aval da prefeitura para obter um
financiamento de R$ 240 milhões da Caixa Econômica Federal.Com
isso conseguiu-se a criação de um comitê gestor para fiscalizar e
decidir as prioridades de expansão dos serviços. O resultado foi a
expansão da cobertura de 89,8% em 2013 para 99,9% no serviço de água e
de 43,5% para 71,1% no serviço de esgoto, ambos em 2015 além da
priorização de bairros carentes.
Mesmo com estas fracassadas experiências práticas , o Senado votou em
peso na aprovação do projeto de Lei , com 65 votos a favor
e 13 contra.
_________________
(*) Os dados constam na pesquisa que é uma tese de doutorado intitulada
‘A luta pela água na Amazônia: desafios e contradições do acesso a água
em Manaus’, do padre Sandoval Alves Rocha e defendida em fevereiro
deste ano. A pesquisa avalia a privatização do serviço de água e esgoto
de Manaus a partir do ano 2000.
Um mercado de Multinacionais, com apoio do Banco Mundial
É de se perguntar porque, diante do fracasso das experiências de
privatização do setor, houve tanta unanimidade e uma certa pressa
na aprovação da lei. Na verdade a proposição reuniu um amplo
espectro de agentes que se mobilizaram de forma ativa para obter esse
resultado. O impulso original partiu das grandes empresas que usam a
água em grande quantidade nos seus produtos, principalmente no ramo de
alimentos e bebidas, ou tem interesse em entrar no negócio da
água, que se anuncia bem lucrativo. Como vimos , já há grandes
grupos econômicos em atuação no setor no território nacional, o que
também pode explicar a questão. O empreendimento de
privatização da água conta com apoio institucional do Banco Mundial.
São frequentes as denúncias do papel do Banco Mundial e seu ramo
financeiro a Corporação Financeira Internacional em obrigar os
países a privatizarem seus serviços de fornecimento de água. Na verdade
o grupo Banco Mundial oferece créditos gigantescos para os países
privatizarem, ou exigem a privatização como contrapartida para
empréstimos de “saneamento” da dívida externa dos países.
Em alguns casos os próprio Banco Mundial é dono de empresas do setor da
água enquanto se apresenta como conselheiro imparcial. O Banco Mundial
é o motor por trás desta invasão corporativa nos sistemas e nos
serviços de água. O Banco Mundial estimula os países a privatizarem
seus sistemas de água de forma que passem a ter como foco o lucro
e não a satisfação dos usuários. O resultado é que o Banco
Mundial promove medidas que deixarão mais cara a água para os
consumidores. Além disso, o produto oferecido é de má qualidade,
as empresas não são tão eficientes e não investem o volume necessário
de recursos, deixam regiões inteiras sem o fornecimento da água e
efetuam cortes aleatórios em outras regiões, sem que haja transparência
e comunicação com as comunidades. No final, a má qualidade da água e do
saneamento permite a propagação de parasitas que são a principal causa
de doenças e mortes no mundo em desenvolvimento, o que pretensamente a
privatização serviria para evitar.
O mercado mundial das águas
Como efeito da sempre denunciada “globalização mercantil” a água
se tornou um produto, fonte de lucros sem fim. O mercado das águas é
denominado por duas grandes multinacionais francesas, a
Vivendi-Générale des Eaux e a Suez-Lyonnaise des Eaux, que são
proprietárias de aproximadamente 40% do atual mercado, e que
cobram a conta pelos seus serviços a mais de 110 milhões de pessoas
cada uma, respectivamente em 100 e 130 países. Os lucros dessas
multinacionais decorrem da desregulamentação do comércio, não somente
com a cumplicidade das instituições internacionais, mas também dos
governos nacionais.
No “mercado da água”, os dois gigantes franceses e suas inúmeras
filiais vêm assinando contratos de privatização muito lucrativos há
muitos anos. As vitórias da Suez-Lyonnaise des Eaux (China, Malásia,
Itália, Tailândia, República Tcheca, Eslováquia, Austrália, Estados
Unidos) não devem fazer esquecer os da Générale des Eaux (hoje,
Vivendi), com a qual a Suez-Lyonnaise se associa às vezes, como em
Buenos Aires, em 1993. Nos últimos anos, a Vivendi instalou-se na
Alemanha (Leipzig, Berlim), na República Tcheca (Pilsen), na Coréia
(complexo de Daesan), nas Filipinas (Manila), no Cazaquistão (Alma
Ata), mas também nos Estados Unidos, com suas filiais Air and Water
Technologies e US Filter.
A desestatização avança
Essa monopolização do mercado de águas tem levado a problemas no
fornecimento de água potável nos mais diferentes países. Em Berlim o
governo privatizou 49,99% do sistema hídrico em 1999. A medida foi
extremamente impopular e, após anos de mobilização de moradores - e um
referendo em 2011 -, ela foi revertida por completo em 2013. Foi uma
vitória popular mas por outro lado o Estado precisou pagar 1,3 bilhão
de euros para reaver o que antes já lhe pertencia. Mas isso gerou uma
grande dívida para o Estado, que vai ser paga pela população ao longo
de 30 anos.
Há exemplos desses conflitos também na América Latina. Em Cochabamba,
na Bolívia, os serviços de água e saneamento foram privatizados em 1999
e concedidos à empresa Águas del Tunari. Logo após a concessão, a
companhia provocou uma elevação das tarifas em cerca de 35% .
Isso teve um efeito devastador para os usuários de baixa renda, pois a
nova taxa cobrada pela empresa correspondia a 22% do salário mínimo no
país Isso levou, em março de 2000, à “Guerra das Águas” que
descreveremos mais adiante, que acabou provocando a renúncia do
gabinete nacional e no cancelamento do contrato de privatização. A
empresa abriu, entretanto um processo contra o governo da Bolívia.
Em Buenos Aires a Companhia Águas Argentinas aumentou as tarifas em
88,2% entre 1993 e 2002, período em que a inflação subiu apenas 7,3%.
Isso representou 9% da renda familiar da população de baixa renda,
enquanto para o usuário de renda média apenas 1,9%. Assim como em
Buenos Aires, em Tucumán, no caso da Águas del Aconquija, uma das
primeiras medidas foi uma alteração da taxa que, junto a uma nova
cobrança para financiar o órgão regulador, resultou em um aumento de
106% das tarifas. Além disso, adicionou-se uma “tarifa de
infraestrutura” que resultou em atos de desobediência civil para não
pagamento dos serviços. Cerca de 86% dos contratantes aderiram às
manifestações.
As grandes empresas e a campanha sutil pela privatização do saneamento
básico
As privatizações não chegam para resolver o problema da população , mas
sim o problema das grandes empresas que necessitam de quantidades
imensas de água para seu produtos. Um exemplo disso é a Coca Cola. A
empresa busca se apropriar das fontes de água e faz isso para atender a
seus interesses. Uma unidade da empresa é acusada de ter secado as
nascentes em Itabirito, na região metropolitana de Belo Horizonte. A
fábrica, segundo as organizações de defesa do meio ambiente, secou
nascentes dos rios Paraopeba e das Velhas – responsáveis por quase toda
o abastecimento de água de Belo Horizonte. A Coca-Cola, claro, nega que
a unidade esteja provocando falta de água na região e afirma que possui
todas as licenças para funcionamento.
O conjunto de interesses empresariais na privatização iniciaram , há já
algum tempo, uma sutil campanha de mídia na imprensa, destacando os
aspectos negativos do saneamento e culpando o estado pelo
resultado. O exemplo de matérias sobre o assunto são múltiplos, que
pode se verificar pelas próprias manchetes sobre o tema: “A verdade
sobre o saneamento básico e como resolver o problema. Se aprovada pelo
Congresso, nova lei para o setor trará capital, eficiência e permitirá
elevar investimento” é o título de artigo de Armínio Fraga e Claudio
Frischtak na Folha de São Paulo em 7 de Novembro de 2019.
Em 23 de Março deste ano, reportagem da Agência CNI de Notícias,
pertencente à poderosa Confederação Nacional de Indústria publica: “De
volta ao básico: porque o Brasil precisa avançar no saneamento? A
matéria estampa uma foto mostrando as péssimas condições de saneamento
em uma favela.
Além disso, o lobby de várias empresas privadas que já atuam no mercado
surtiram evidente efeito.
A trajetória da privatização do saneamento no Brasil
O golpista Michel Temer reuniu-se com o presidente da Nestlé, Paul
Bucke, em um encontro fora da agenda, no início de 2018. Pouco tempo
depois, o governo enviou ao Congresso a Medida Provisória 844, que
obrigava os municípios a conceder os serviços para as empresas
privadas, mas a medida não foi aprovada. Para obrigar os Estados à
privatização, o Governo Temer incluiu no Programa de Parceria
para o Investimento (PPI) a privatização de 17 companhias de saneamento
pertencentes aos governos estaduais, que não chegou a ter grandes
efeitos. Exatamente no último dia de mandato, Temer editou a MP
868, cujo conteúdo era o mesmo da anterior. Quando a MP 868 perdeu
validade, o senador Tasso elaborou o Projeto de Lei 3261, de
2019, que, na essência, tinha o mesmo texto da medida provisória. A
“nova” lei foi aprovada rapidamente nas comissões e plenário, em junho
de 2019, e logo chegou à Câmara (o que mostra os grandes interesses que
existem em favor da privatização da água). No entanto, o texto aprovado
pelo Senado foi arquivado pela Câmara, em proveito do PL
4.162/19, de autoria do Executivo. Essa decisão foi tomada sob o
argumento de que daria chance à Câmara para que os deputados possam ter
a palavra final sobre o marco regulatório. Na verdade, não houve muito
debate, e todas as críticas e tentativas dos partidos de oposição de
barrar o projeto foram massacradas por um imenso rolo compressor da
situação. O Projeto do Governo Bolsonaro foi aprovado e
enviado ao Senado em dezembro de 2019. Em 24 de Junho de
2020 o projeto foi aprovado a toque de caixa, em sessão virtual,
dispensando o parecer das comissões e com a retirada de todos os
destaques. A opinião pública só veio a saber do projeto após a sua
aprovação.
O “Modus Operandi” da Privatização
A Lei aprovada é de difícil leitura, pois se baseia
na reformulação de várias leis que se relacionam com tema do saneamento
básico, tornando quase impossível ao cidadão comum opinar sobre a
matéria, o que parece ser feito de forma proposital. Outro ponto a
ressaltar é a presença constante do Senador Tasso Jereissati na
relatoria tanto do projeto do Senado, de sua autoria, como no
projeto enviado pelo Executivo. O senador é proprietário de muitas
fábricas de coca-cola no país, produto que sabidamente consome
quantidades imensas de água. Há, portanto, uma intervenção direta das
empresas na própria elaboração da legislação, já que a lei aprovada não
difere muito do projeto do Senador.
A essência da lei, no entanto, é principalmente o fato de que não se
trata de só de estimular ou possibilitar a entrada da empresa
privada no setor de saneamento básico mas , sim tornar obrigatória a
privatização das empresas.
A principal novidade introduzida pelo projeto é o fim dos contratos de
programa, instrumentos pelos quais os municípios transferem a execução
dos seus serviços de saneamento para empresas públicas dos governos
estaduais. Os contratos contêm regras de prestação e tarifação, mas
permitem que as estatais assumam os serviços sem concorrência. O
absurdo que a lei introduz é que a exploração da oferta de água e
esgoto só poderá ser decidida como base nas licitações pelos municípios
, que deverão obrigatoriamente ter a participação das empresas privadas
, além das empresas públicas estaduais.
Os contratos de programa que já estão em vigor serão mantidos, e, até
março de 2022, poderão ser prorrogados por 30 anos. Mas a lei passa a
estabelecer condições draconianas, como a total viabilidade
econômico-financeira, apenas com a cobrança de tarifas e
contratação de dívida. Devem, também, se comprometer com metas de
universalização a serem cumpridas até o fim de 2033: cobertura de 99%
para o fornecimento de água potável e de 90% para coleta e tratamento
de esgoto. Essas porcentagens são calculadas sobre a população da área
atendida. Mas essas metas, de acordo com a lei, podem ser
postergadas para até 10 anos depois. E caso haja o interesse em
reestatizar, os governos terão que indenizar as empresas por todo
investimento feito.
Outros critérios também deverão ser atendidos, como não interrupção dos
serviços, mesmo em caso de não pagamento das tarifas, redução de perdas
e melhoria nos processos de tratamento. O cumprimento das metas será
verificado periodicamente, e as empresas que estiverem fora do padrão
poderão sofrer sanções do órgão regulador. Além disso, elas não poderão
distribuir lucros e dividendos.
Um outro aspecto importantíssimo é que, para receber apoio financeiro e
técnico da União, os municípios devem privatizar suas estatais de
saneamento. Ou seja, o que até hoje era uma possibilidade para estados
e municípios, passa a ser uma obrigação. Outra modificação é que a
Agência Nacional de Águas (ANA) será a nova reguladora do saneamento
básico, cuja colaboração financeira e técnica também está sujeita a
adesão dos municípios ao novo sistema. A perversidade do sistema é que
a lei acaba com o subsídio cruzado, que permitia reaplicar recursos dos
municípios rentáveis para os menos lucrativos, colocando sempre em
primeiro lugar os lucros das empresas privadas. Por isso, existe
um alto risco de que a situação permaneça igual ou pior nos municípios
mais pobres, e de que o setor privado explore apenas áreas mais
lucrativas.
Blocos
Para viabilizar economicamente a prestação para cidades menores, mais
isoladas ou mais pobres, o projeto determina que os estados componham
grupos de municípios, ou “blocos”, que contratarão os serviços de forma
coletiva. Municípios de um mesmo bloco não precisam ser vizinhos. A
adesão é formalmente voluntária — uma cidade pode optar por não
ingressar no bloco estabelecido para ela e licitar sozinha. Mas
dificilmente ela vai fazer isso, pois ficará sem os recursos federais e
a assistência técnica que será dada ao Bloco pela ANA (Agência Nacional
de Águas).
Papel do Governo Federal
A regulação do saneamento básico do Brasil vai ficar a cargo da Agência
Nacional de Águas (ANA), uma agência federal. Os municípios e dos
blocos de municípios devem implementar planos de saneamento
básico. A ANA e poderá oferecer apoio técnico e ajuda financeira, desde
que o se adira ao sistema de prestação e se faça a
licitação de prestação dos serviços.
As cidades que forem atendidas por estatais que serão privatizadas
podem não concordar com a transferência dos serviços para a iniciativa
privada. Nesse caso, elas deverão assumir a prestação e pagar
indenização por investimentos já feitos que ainda não tenham sido
quitados. A lei ainda torna ilimitada a participação da União em
fundos de apoio à estruturação de parcerias público-privadas, de modo a
facilitar essa modalidade para os estados e municípios. Até agora, o
limite de participação do dinheiro federal nesses fundos é de R$ 180
milhões.
Outros dispositivos
• Subsídio: Famílias de baixa renda poderão receber
subsídios tarifários ou não tarifários para cobrir os custos do
fornecimento dos serviços de saneamento para suas residências. Elas
também poderão ter gratuidade na conexão à rede de esgoto. Mas esta
medidas serão muito restritas, pois a lei exige o equilíbrio
econômico-financeiro dos projetos.
• Lixões: o projeto estende os prazos da Política
Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305, de 2010) para que as cidades
encerrem os lixões a céu aberto. Os novos prazos vão de 2021, para
capitais e suas regiões metropolitanas, até 2024, para municípios com
até 50 mil habitantes.
• Tarifas: os municípios e o Distrito Federal deverão
passar a cobrar tarifas sobre outros serviços de asseio urbano, como
poda de árvores, varrição de ruas e limpeza de estruturas de drenagem
de água da chuva. Se não houver essa cobrança depois de um ano da
aprovação da lei, isso será considerado renúncia de receita e o impacto
orçamentário deverá ser demonstrado. Esses serviços também poderão
integrar as concessões.
As Críticas à Lei e a Rebelião das Águas
Na verdade, a continuidade dessa política de
privatização do saneamento básico está mostrando que há forças
poderosas que exigiram do governo a aplicação dessa política e motivou
a aprovação pelo Senado, às pressas e em pleno auge da pandemia. O novo
marco regulatório do saneamento busca avançar a estratégia de
privatização da água no país. Para as empresas transnacionais e bancos,
a privatização do saneamento brasileiro está ligada diretamente à
tentativa de privatização da Eletrobrás, maior empresa de energia da
América Latina, haja visto que se houver a aprovação legal do mercado
da água (PL n° 495/17) e a privatização da Eletrobrás, a outorga dos
principais rios do país passará para o controle de empresas privadas
estrangeiras. Desde 2017, o Senador Jereissati procura aprovar o
Projeto de Lei n° 495, que estabelece a criação dos “mercados da água”,
prioritariamente em áreas “com alta incidência de conflito pelo uso de
recursos hídricos”. O relator da proposta no Senado é José Serra,
também do PSDB. Segundo o texto do PL, o mercado de águas é um
“instrumento destinado a promover alocação mais eficiente dos recursos
hídricos”, “para priorizar o uso múltiplo e a alocação mais eficiente
dos recursos hídricos, bem como para criar os mercados de água”. De
acordo com o projeto “os mercados de água são um instrumento de gestão
de crises hídricas e funcionam mediante a cessão dos direitos de uso de
recursos entre usuários da mesma bacia ou sub-bacia hidrográfica, por
tempo determinado”. Na verdade, a venda do direito de exploração da
água é a consolidação do projeto neoliberal no trato os recursos
hídricos do país. A lógica deixa de ser a necessidade da coletividade e
passa a ser a lógica do mercado, ou seja quem puder pagar, como as
multinacionais da água, fica dono de recursos vitais para a
humanidade, no caso para nós, os brasileiros. O planejamento do
uso dos recursos hídricos precisa acontecer, mas não com um mercado de
água voltado para o agronegócio e as grandes multinacionais do setor, e
sim, um Plano de Segurança Hídrica elaborado a partir de um profundo
debate com a sociedade.
Quem produz água hoje no Brasil são os pequenos agricultores, são essas
propriedades que preservam as nascentes, a floresta, a mata ciliar, são
esses os grandes produtores de água. O PLS 495 , ao criar mercados de
água, se preocupa em o acesso aos recursos hídricos para
empresas, inclusive as multinacionais, que consomem muito e tem muito
dinheiro para comprar a água.
O maior argumento pela privatização é a ausência de
recursos das empresas estaduais de saneamento, já que os Estados estão
em situação falimentar, agravada pela queda de receita gerada pela
pandemia. Na verdade, as empresas privadas que vierem a assumir o setor
de água e saneamento vão poder solicitar empréstimos aos bancos
públicos, com juros baixos, com prazo de pagamento longo, sendo que
essas linhas de financiamento poderiam e deveriam ser disponibilizadas
para as estatais.
O resultado da privatização será possibilitar a formação de
grandes monopólios do setor privado, pois trata-se de um recurso
que não possibilita a “livre concorrência” do seu mercado.
Esses monopólios, por sua vez, vão privilegiar a exploração das regiões
mais populosas e de renda média alta, rejeitando a oferta para regiões
mais remotas e não-lucrativas.
A privatização dos serviços de saneamento e água tem se mostrado
inviável no mundo e no Brasil, como analisamos no início deste
artigo. Grandes cidades como Buenos Aires, Berlim, Paris, Kuala Lumpur
e Budapeste, são algumas das mais de 300 ao redor do mundo que
decidiram reestatizar serviços hídricos após constatar os
desastrosos resultados com a privatização. No período de 2000 a 2017,
foram 900 reestatizações.
Apesar de extremamente importante, não é muito conhecido no Brasil o
episódio intitulado “A guerra da água da Bolívia”, ou “Guerra da água
de Cochabamba”, que está ligado ao processo de privatização da água,
conforme já analisamos anteriormente. Os grandes grupos de mídia
que dominam a informação, a maioria ligados aos interesses do
imperialismo, por razões óbvias, escondem o acontecimento. Entre
janeiro e abril de 2000, ocorreu uma grande revolta popular em
Cochabamba, a terceira maior cidade do país, contra a privatização do
sistema municipal de gestão da água, depois que as tarifas cobradas
pela empresa Aguas del Tunari (pertencente ao grupo norte-americano
Bechtel) dobraram de preço, o que acarretou terríveis consequências
para a população, já extremamente pobre.
Em 8 de abril de 2000, Hugo Banzer , general e político de
extrema direita que tomou o poder na Bolívia através de um golpe
de Estado, declarou estado de sítio. A repressão violenta se abateu
sobre o movimento e a maioria dos líderes do movimento foram presos,
assim como várias estações de rádio foram fechadas. Mas a população não
recuou e continuou se manifestando vigorosamente, apesar da grande
repressão. Em 20 de abril de 2000, com o governo percebendo que o povo
não iria ceder, o general desistiu da privatização e anulou o contrato
vendilhão de concessão de serviço público, firmado com a Bechtel. A
intenção do governo era celebrar um contrato que iria vigorar por
quarenta anos. Graças à mobilização da população, a Lei 2.029, que
previa a privatização das águas do país, foi revogada. Tudo
começou com a exigência do Banco Mundial de que se fizesse a
privatização, como contrapartida da negociação da dívida externa do
país, de 25 milhões de dólares.
De agora em diante as forças populares e
democráticas no país tem o dever de começar a nossa Guerra das águas e
, num prazo de tempo menor possível, revogar essa lei do Governo
Bolsonaro, que , como outros atos desse governo criminoso e fascista,
certamente deverá resultar em grandes prejuízos para nossa
infraestrutura de saneamento básico e para a própria soberania nacional.
O tema deve ser incluído e talvez até se tornar o centro do debate das
eleições municipais, já que os municípios serão os principais atingidos
por essa radical mudança do marco regulatório do saneamento básico do
país.