Jeanine Áñez empossou na Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) - principal estatal do país - o executivo da transnacional Schlumberger, maior empresa de serviços de petróleo do mundo, Richard Botello Em meio ao avanço da pandemia na Bolívia e da censura aos meios de comunicação, a autoproclamada presidenta Jeanine Áñez rasgou a Constituição Política do Estado (CPE) e empossou na Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) - principal estatal do país - o executivo da transnacional Schlumberger, maior empresa de serviços de petróleo do mundo, Richard Botello. Com a nomeação, realizada na quinta-feira passada, Botello passa a ser o terceiro presidente da YPFB - atolada em corrupção pelas sucessivas chefias impostas durante os seis meses do golpe contra o presidente Evo Morales, patrocinado pelos Estados Unidos. Vale lembrar que, até o dia anterior, Botello era o gerente do cartel multinacional na Bolívia. “A partir desta indicação, o governo está descumprindo a normativa legal, e são várias leis, e a própria Constituição”, esclareceu Luis Arce Catacora, ex-ministro da Economia e de Finanças Públicas. Conforme o artigo 238 da Carta Magna boliviana: “não poderão assumir cargos públicos eletivos (…) quem tenha ocupado cargos de direção em empresas estrangeiras transnacionais que tenham contratos ou acordos com o Estado, e não tenham renunciado pelo menos cinco anos antes do dia da eleição". “Embora o cargo de presidente da YPFB não seja eletivo, tem o mesmo perfil, uma vez que a empresa tem caráter estratégico para o desenvolvimento nacional”, destacou Luis Arce.
De acordo com o ex-ministro de Obras Públicas, Jerges Mercado, “a nomeação de Botello é uma agressão à lei 2027 do estatuto do funcionalismo público, pois há um forte conflito de interesses, já que ele foi executivo, por mais de duas décadas, de uma empresa que tem contrato direta ou indiretamente com a YPFB. Dada à alta hierarquia do cargo, por analogia com o artigo 238 da Constituição, sua indicação é inaceitável”, sublinhou. Mas quem liga para a lei quando se está tentando leiloar o país, em meio a um processo eleitoral que vem sendo adiado ininterruptamente por Áñez e seus asseclas? “Áñez está usurpando suas funções ao indicar este representante de transnacional para a presidência da YPFB, que tem um cargo equivalente ao de ministro. Isso é uma traição à Pátria e deve ser aberto um processo penal por juízo de responsabilidade”, afirmou o pesquisador e cientista social boliviano Porfirio Cochi, frisando que 65 vidas foram entregues e centenas de pessoas ficaram feridas em 2003 na luta pela recuperação dos hidrocarbonetos. No currículo do novo presidente da estatal está o de ter sido gerente de “Serviços de Poço” da Schlumberger na América Latina e ter trabalhado com “Operações Não Convencionais” nos Estados Unidos. Botello foi empossado pela autoproclamada somente um dia após sua saída da transnacional, substituindo a Herland Soliz, envolvido em inúmeras denúncias de corrupção e irregularidades na contratação “emergencial” de seguros e na compra superfaturada de combustíveis no valor de US$ 160 milhões. Ao alertar para a cortina armada por Áñez com o objetivo de silenciar qualquer debate sobre o tema, a ex-chefe das Rádios dos Povos Originários e ex-diretora-executiva do Centro de Produções Radiofônicas da Bolívia, Dolores Arce é taxativa: “a nomeação é uma nova violação flagrante da Constituição, uma vez que, por precaução, em defesa dos interesses do Estado, aqueles que atuaram nos últimos anos como altos gestores de corporações transnacionais não podem ser nomeados para o setor”. Na mesma lógica, acrescentou, “a recente aprovação, via Decreto Supremo, do ingresso de diferentes sementes transgênicas é uma violação da Constituição”. Condenando o atropelo à legislação vigente e ao interesse público, o ex-ministro Luis Arce, candidato à presidência da Bolívia pelo Movimento Ao Socialismo (MAS), destacou que em 2006 o presidente Evo Morales nacionalizou os hidrocarbonetos e fez com que a YPFB se convertesse na empresa pública mais importante do país, proporcionando os recursos para que o Estado pudesse investir no desenvolvimento e em programas sociais.
Entre as inúmeras tramoias de Soliz está a aquisição do barril de petróleo que se encontrava em menos de US$ 20 em abril - devido à pandemia do coronavírus - por US$ 140. O sobrepreço de até US$ 120 por barril fala por si. Soliz estava no cargo desde 16 de dezembro de 2019, quando substituiu o também golpista José Luis Rivero, que havia declarado que a estatal estava “quebrada”. O problema é que estas informações não são encontradas nos meios de comunicação bolivianos, uma vez que os profissionais dos jornais, rádios, redes de televisão e sites encontram-se sob risco de censura e até de prisão. Outros, como o jornalista argentino Sebástian Moro, correspondente do Página 12, não tiveram a mesma sorte. Sebástian acabou sendo assassinado pelos milicianos de Áñez, sendo apontado como “a primeira vítima fatal do golpe” por campanhas internacionais pela democratização da comunicação. “Houve atos de vandalismo e ataques a funcionários, jornalistas e militantes do MAS em diferentes pontos do país. Entre eles, o governador de Oruro teve sua residência incendiada, trabalhadores do canal Bolívia TV e da Rádio Pátria Nova foram sequestrados e privados de seu direito ao trabalho por grupos de choque, e a sede da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses (CSUTCB) foi invadida e atacada”, havia denunciado Sebástian, dando o seu testemunho contundente e fiel das práticas criminosas. Vários outros abusos, como o estupro por bandos de extrema-direita de uma menor de 14 anos filha de uma autoridade ou o sequestro de José Aramayo, diretor do jornal Prensa Rural, amarrado em uma árvore - foram invisibilizados pela mídia local - com várias rádios queimadas, emissoras de televisão silenciadas e jornais ocupados - só vieram a ser conhecidos muito depois.
"Meu irmão relatou o que sofria quando já estava na clandestinidade. Estava preocupado e sabia que havia um golpe de Estado muito violento contra Evo Morales", contou Penélope Moro, lembrando que a perícia médica argentina apontou que ''ele sofreu violência física prévia ao Acidente Vascular Cerebral (AVC)”. Revoltada, a irmã ressaltou que a família conta com testemunhos e imagens que confirmam a agressão sofrida por Sebastián em sua residência. “Naquela época eles estavam agredindo todos os jornalistas que refletiam sobre a realidade e anunciavam o que estava por vir", protestou Penélope. Em Cochabamba, a renomada comunicadora Dolores Arce recordou que, no dia 1º de maio, o ainda presidente da YPFB, Herland Soliz, agradeceu publicamente os meios de comunicação por não terem informado nada sobre os milionários contratos realizados pela empresa. “O agradecimento foi feito antes das revelações do jornalista Junior Arias, da Gigavision. Arias, por meio de documentos, demonstrou os defeitos dos contratos no valor de dezenas de milhões de dólares que a YPFB havia feito diretamente, sem respeitar os procedimentos e, pior ainda, sem qualquer transparência”, frisou. Dois dias depois, lembrou Dolores, “o ministro Arturo Murillo acusou os ‘maus jornalistas e políticos mal orientados’ de fabricarem histórias com o objetivo de afetar a imagem do governo”. “Desta vez, referindo-se a um novo escândalo envolvendo a filha de Jeanine Áñez, Carolina Áñez, que supostamente havia trazido um amigo - filho de uma deputada e candidata de Juntos - de Tarija em um voo da Força Aérea Boliviana (FAB) para participar do seu aniversário”, acrescentou. Logo depois, Junior Arias foi informado oficialmente que ficaria sem qualquer verba de publicidade estatal.
Apertando o cerco, sob o pretexto da Emergência Sanitária, Añez amplia o alcance dos decretos contra a “desinformação por Covid-19”. No dia 7 de maio foi promulgado o Decreto Supremo (DS) 4231, que amplia o estabelecido nos DS 4199 e 4200, em relação à divulgação de informações que gerem incertezas na população. E, como mostra de cinismo, condenou Dolores Arce, o DS foi difundido neste domingo, 10 de maio, quando se celebra o Dia do Jornalista na Bolívia, e estabelece: “as pessoas que incitem o descumprimento do presente Decreto Supremo ou difundam informação de qualquer índole, seja em forma escrita, impressa, artística e/ou por qualquer outro procedimento que ponham em risco a saúde pública, gerando incerteza na população, serão passíveis de denúncias pela comissão de delitos tipificados no Código Penal”. Nem a crise da pandemia, nem a emergência de saúde, nem sua natureza "transitória", nem a rejeição popular, nem a ilegitimidade e ilegalidade de sua administração impediram o governo de fato da Bolívia de tomar decisões estruturais de natureza antinacional a favor os setores da empresa privada do leste com a aprovação do Decreto Supremo 4232, de 7 de maio de 2020, que autoriza o uso de transgênicos ou sementes modificadas na produção de soja, milho, trigo, cana de açúcar e algodão (monocultura de exportação em massa).
Essa medida é adicionada a outras ações em poucos meses, como a extensão da concessão de terras aos pecuaristas, a liberalização total da exportação de soja e outros produtos agrícolas, colocando em risco o mercado interno, a apresentação de demandas das famílias de proprietários de terras para a recuperação de terras higienizadas e revertidas para o Estado durante o governo Evo Morales do Movimento para o Socialismo (MAS) e a queima de florestas para expandir a fronteira agrícola sensível a áreas reconhecidas como Territórios Indígenas ou Parques ou Reservas Naturais. A rejeição dessas políticas pelos movimentos populares do campo e da cidade tem sido contínua e mobilizada, principalmente das organizações de camponeses, indígenas, mulheres, interculturais e pequenos e médios produtores agrícolas, que agora aderiram grupos e instituições de ativistas ambientais que apoiaram o golpe de estado de 10 de novembro de 2019. A declaração da Federação Única de Trabalhadores Camponeses de Cochabamba diz que "rejeitamos a tentativa de autorizar o uso de sementes transgênicas na Bolívia, desse modo eles ameaçam a segurança alimentar e a soberania de toda a população em geral ”. Diante dessa rejeição social, o recém-nomeado Ministro do Desenvolvimento Produtivo e Economia Plural, Oscar Ortiz, a tempo de apoiar o decreto, declarou "esta pode ser uma resposta importante para promover maior produtividade, fortalecer a segurança alimentar e gerar mais receita com as exportações" . Ortiz era senadora e candidata à presidência do partido Movimento Social Democrata de Santa Cruz (MDS) em outubro passado e mal obteve 4% dos votos e, juntamente com as ministras Maria Elva Pinkert de Meio Ambiente e Água, Eliane Capobianco de Desenvolvimento Rural e Terras e José Luis Parada de Economia e Finanças, faz parte das elites econômicas do leste. O governo de Jeanine Añez tem o apoio desses setores empresariais, de outros grupos de poder econômico em outras regiões do país e do governo de Donald Trump, no entanto, tem uma má imagem internacional devido aos massacres de Senkata e Sacaba em novembro passado ( Relatórios da ONU e da CIDH), pela perseguição de líderes sociais e políticos da oposição e pelo tratamento de migrantes bolivianos no Chile que procuravam retornar ao país durante a quarentena. Aparentemente, as medidas econômicas apressadas adotadas no campo da agricultura, bem como as de apoio ao banco privado, os acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a abertura de empresas transnacionais para a exploração de lítio e hidrocarbonetos destinam-se a restaurar completamente o projeto neoliberal diante de possíveis mudanças na política nacional. Por sua vez, a crise social, de saúde e política está gerando uma inquietação semelhante à de outubro de 2003.