Boletim Econômico Ecosys 07/07/2020 Página Inicial



A Privatização da Água: o desastre anunciado                 Prof. Dr. Ricardo F. Rabelo

No dia 26 de Junho, o Senado votou o Projeto de Lei (PL) 4162 , que trata do novo marco regulatório do Saneamento e foi apresentado pela imprensa como a solução para os problemas existentes . Os argumentos para as mudanças no setor de saneamento e água seriam pelo menos dois: a péssima situação da oferta de serviços básicos como oferta de água encanada e de esgotamento sanitário e  a incompetência do Estado em cumprir esse papel. A solução seria a entrada de empresas privadas no setor de forma mais incisiva, porque já há experiências de privatização no setor. A atuação das empresas privadas , no entanto, tem sido uma péssima experiência, como em Manaus e Tocantins.
Nessas duas cidades tem-se  dois exemplos marcantes que apontam para o desastre que pode significar a privatização do saneamento básico e da água:
Manaus – os serviços de saneamento básico estão sob controle de uma empresa privada  há cerca de 20 anos. A tarifa de água paga em Manaus é a de maior valor entre as capitais da Região Norte e a 5ª mais cara do país, de acordo com relatório de pesquisa  da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Essa  tarifa de água, associada a uma injustificada tarifa de esgoto (100% do valor da água consumida), proporcionou para a empresa uma arrecadação de R$ 1.676,74 bilhão nos últimos 5 anos enquanto o investimento realizado foi somente de R$ 311,44 milhões ao longo do mesmo período (Instituto TrataBrasil)A pesquisa da PUC-RJ indicou  que o lucro da concessionária Manaus Ambiental, que foi substituída pela Aegea Saneamento( com participação minoritária pelo Fundo Soberano de Cingapura e Banco Mundial) em março de 2018, subiu de R$ 8,9 milhões em 2011 para R$ 42,4 milhões em 2017.(*) Esse processo de privatização tem gerado grande insatisfação na população, o que é demonstrado pela evolução histórica dos dados divulgados pelos Procons (estadual e municipal) e os índices da Comissão de Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa.

Pode-se identificar uma revolta dos usuários o que levou à instalação de duas CPIs pela Câmara Municipal de Manaus, em 2005 e 2012, que recomendaram a quebra do contrato de concessão. Nestas duas décadas foi constatada uma total   precariedade dos serviços privados na cidade, o que levou à instauração do estado de calamidade pública nas zonas periféricas da cidade  em 2006,  e numa onda de protestos públicos e processos judiciais contra a empresa. Os últimos dados fornecidos pelo Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS 2018) ajudam a iluminar o cenário indicando que a cobertura de abastecimento de água de Manaus alcança somente 91% da população. Tal indicador, mesmo assim, não corresponde à realidade. Como se sabe, a maioria dos domicílios da cidade (53,38%) está localizada em áreas de habitação subnormal (palafitas, ocupações e assentamentos), sinalizando que grande parte da população manauara está fora do sistema de abastecimento de água e outras significativas parcelas usufruem de um serviço precário. Por outro lado, somente 12,4% da população da capital do Amazonas é atendida pela coleta de esgoto. A cidade é também uma das capitais com menor média de investimentos no setor.
Apesar dos fracassos em Manaus, em outubro de 2019,  a  Aegea Saneamento venceu  a Concorrência Internacional nº001/2019 promovida pela Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) para atuar em acordo de Parceria Público-Privada (PPP). A licitação prevê a concessão administrativa para a execução de obras de infraestrutura em esgotamento sanitário, melhorias, manutenção e operação dos sistemas, bem como a realização de programas comerciais em gestão do parque de hidrômetros e a correção de irregularidades. A parceria atenderá 9 cidades do Rio Grande do Sul – Alvorada, Cachoeirinha, Canoas, Eldorado do Sul, Esteio, Gravataí, Guaíba, Sapucaia do Sul e Viamão, municípios da região metropolitana de Porto Alegre, com população de mais de 1,5 milhões de pessoas .

Tocantins – Foi pioneiro ao privatizar sua Companhia Estadual de Água e Esgoto, a Saneatins.  A privatização iniciou-se  em 1998, com investimento de  30% efetuado na estatal pela Empresa Sul-Americana de Montagens (Emsa), grupo de Goiás, que passou a deter o controle da empresa em 2002. Em 2011, a Saneatins passou para a Odebrecht Ambiental (hoje BRK Ambiental, controlada pela Brookfield Asset Management, um fundo de investimentos canadense.
Em 2010, para enfrentar as constantes reclamações populares contra o  serviço oferecido, o governo estadual criou uma autarquia , a Agência Tocantinense de Saneamento – ATS uma empresa pública para substituir, se solicitado, a Saneatins privada.
O resultado foi que, dos 125 municípios atendidos pela Saneatins, 78 deles migraram para a ATS,  ficando a Saneatins com 47 municípios, incluindo os com maior densidade demográfica, portanto com também maior capacidade de geração de receitas.
 
Fonte: Privatização de Companhia Estadual de Saneamento : A Experiência Única do Tocantins – Lições para Novos Arranjos com a Iniciativa Privada

O estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), Privatização de Companhia Estadual de Saneamento : A Experiência Única do Tocantins – Lições para Novos Arranjos com a Iniciativa Privada, mostra que os serviços da empresa privada não apresentaram uma eficiência ótima como pregado pelos defensores do processo.  A população atendida por rede de água era de 65% em 1998,  tendo evoluído para 73%, em 2010, e 83% em 2015.  Em 16 anos, portanto, a universalização do serviços não foi atingida, sendo que no serviço de esgoto a situação é ainda pior, pois chegou a apenas 32% nos 48 municípios sob responsabilidade da Saneatins.
Somente quatro municípios, os que superam 50 mil habitantes, conseguiram alterar os contratos com a Saneatins no período entre 1999 e 2014: Palmas, Araguaína, Gurupi e Porto Nacional.
Na capital, Palmas, houve uma grande renegociação em 2013, porque a  Saneatins necessitava do aval da prefeitura para obter um financiamento de  R$ 240 milhões da Caixa Econômica Federal.Com isso conseguiu-se a criação de um comitê gestor para fiscalizar e decidir as prioridades de expansão dos serviços. O resultado foi a expansão da cobertura de 89,8% em 2013 para 99,9% no serviço de água e de 43,5% para 71,1% no serviço de esgoto, ambos em 2015 além da priorização de bairros carentes.
Mesmo com estas fracassadas experiências práticas , o Senado votou em peso na aprovação do projeto de Lei , com  65 votos a favor e  13 contra.
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(*) Os dados constam na pesquisa que é uma tese de doutorado intitulada ‘A luta pela água na Amazônia: desafios e contradições do acesso a água em Manaus’, do padre Sandoval Alves Rocha e defendida em fevereiro deste ano. A pesquisa avalia a privatização do serviço de água e esgoto de Manaus a partir do ano 2000.

Um mercado de Multinacionais, com apoio do Banco Mundial

               É de se perguntar porque, diante do fracasso das experiências de privatização do setor, houve tanta unanimidade e  uma certa pressa na aprovação da lei. Na verdade a proposição reuniu um  amplo espectro de agentes que se mobilizaram de forma ativa para obter esse resultado. O impulso original partiu das grandes empresas que usam a água em grande quantidade nos seus produtos, principalmente no ramo de alimentos e bebidas,  ou tem interesse em entrar no negócio da água, que se anuncia bem  lucrativo. Como vimos , já há grandes grupos econômicos em atuação no setor no território nacional, o que também pode explicar  a  questão. O empreendimento de privatização da água conta com apoio institucional do Banco Mundial. São frequentes as denúncias do papel do Banco Mundial e seu ramo financeiro a  Corporação Financeira Internacional em obrigar os países a privatizarem seus serviços de fornecimento de água. Na verdade o grupo Banco  Mundial oferece créditos gigantescos para os países privatizarem,  ou exigem a privatização como contrapartida para empréstimos de “saneamento” da dívida externa dos países.
Em alguns casos os próprio Banco Mundial é dono de empresas do setor da água enquanto se apresenta como conselheiro imparcial. O Banco Mundial é o motor por trás desta invasão corporativa nos sistemas e nos serviços de água. O Banco Mundial estimula os países a privatizarem seus sistemas de água de forma que passem a ter como  foco o lucro e não a satisfação dos usuários. O resultado é que  o Banco Mundial promove medidas que deixarão mais cara a água para os consumidores.  Além disso, o produto oferecido é de má qualidade, as empresas não são tão eficientes e não investem o volume necessário de recursos, deixam regiões inteiras sem o fornecimento da água e efetuam cortes aleatórios em outras regiões, sem que haja transparência e comunicação com as comunidades. No final, a má qualidade da água e do saneamento permite a propagação de parasitas que são a principal causa de doenças e mortes no mundo em desenvolvimento, o que pretensamente a privatização serviria para evitar.


O mercado mundial das águas

Como efeito da sempre denunciada  “globalização mercantil” a água se tornou um produto, fonte de lucros sem fim. O mercado das águas é denominado por duas grandes multinacionais francesas, a Vivendi-Générale des Eaux e a Suez-Lyonnaise des Eaux, que são proprietárias de aproximadamente  40% do atual mercado, e que cobram a conta pelos seus serviços a mais de 110 milhões de pessoas cada uma, respectivamente em 100 e 130 países. Os lucros dessas multinacionais decorrem da desregulamentação do comércio, não somente com a cumplicidade das instituições internacionais, mas também dos governos nacionais.
No “mercado da água”, os dois gigantes franceses e suas inúmeras filiais vêm assinando contratos de privatização muito lucrativos há muitos anos. As vitórias da Suez-Lyonnaise des Eaux (China, Malásia, Itália, Tailândia, República Tcheca, Eslováquia, Austrália, Estados Unidos) não devem fazer esquecer os da Générale des Eaux (hoje, Vivendi), com a qual a Suez-Lyonnaise se associa às vezes, como em Buenos Aires, em 1993. Nos últimos anos, a Vivendi instalou-se na Alemanha (Leipzig, Berlim), na República Tcheca (Pilsen), na Coréia (complexo de Daesan), nas Filipinas (Manila), no Cazaquistão (Alma Ata), mas também nos Estados Unidos, com suas filiais Air and Water Technologies e US Filter.

A desestatização avança

Essa monopolização do mercado de águas tem levado a problemas no fornecimento de água potável nos mais diferentes países. Em Berlim o governo privatizou 49,99% do sistema hídrico em 1999. A medida foi extremamente impopular e, após anos de mobilização de moradores - e um referendo em 2011 -, ela foi revertida por completo em 2013. Foi uma vitória popular mas por outro lado o Estado precisou pagar 1,3 bilhão de euros para reaver o que antes já lhe pertencia. Mas isso gerou uma grande dívida para o Estado, que vai ser paga pela população ao longo de 30 anos.
Há exemplos desses conflitos também na América Latina. Em Cochabamba, na Bolívia, os serviços de água e saneamento foram privatizados em 1999 e concedidos à empresa Águas del Tunari. Logo após a concessão, a companhia provocou uma elevação das tarifas  em cerca de 35% . Isso teve um efeito devastador para os usuários de baixa renda, pois a nova taxa cobrada pela empresa correspondia a 22% do salário mínimo no país Isso levou, em março de 2000,  à “Guerra das Águas” que descreveremos mais adiante, que acabou provocando a renúncia do gabinete nacional e no cancelamento do contrato de privatização. A empresa abriu, entretanto um processo contra o governo da Bolívia.
Em Buenos Aires a Companhia Águas Argentinas aumentou as tarifas em 88,2% entre 1993 e 2002, período em que a inflação subiu apenas 7,3%. Isso representou 9% da renda familiar da população de baixa renda, enquanto para o usuário de renda média apenas 1,9%.  Assim como em Buenos Aires, em Tucumán, no caso da Águas del Aconquija, uma das primeiras medidas foi uma alteração da taxa que, junto a uma nova cobrança para financiar o órgão regulador, resultou em um aumento de 106%  das tarifas. Além disso, adicionou-se uma “tarifa de infraestrutura” que resultou em atos de desobediência civil para não pagamento dos serviços. Cerca de 86% dos contratantes aderiram às manifestações.

As grandes empresas e a campanha sutil pela privatização do saneamento básico

As privatizações não chegam para resolver o problema da população , mas sim o problema das grandes empresas que necessitam de quantidades imensas de água para seu produtos. Um exemplo disso é a Coca Cola. A empresa busca se apropriar das fontes de água e faz isso para atender a seus interesses. Uma unidade da empresa é acusada de ter secado as nascentes em Itabirito, na região metropolitana de Belo Horizonte. A fábrica, segundo as organizações de defesa do meio ambiente, secou nascentes dos rios Paraopeba e das Velhas – responsáveis por quase toda o abastecimento de água de Belo Horizonte. A Coca-Cola, claro, nega que a unidade esteja provocando falta de água na região e afirma que possui todas as licenças para funcionamento.
O conjunto de interesses empresariais na privatização iniciaram , há já algum tempo, uma sutil campanha de mídia na imprensa, destacando os aspectos negativos do saneamento e culpando o estado  pelo resultado. O exemplo de matérias sobre o assunto são múltiplos, que pode se verificar pelas próprias manchetes sobre o tema: “A verdade sobre o saneamento básico e como resolver o problema. Se aprovada pelo Congresso, nova lei para o setor trará capital, eficiência e permitirá elevar investimento” é o título de artigo de Armínio Fraga e Claudio Frischtak na Folha de São Paulo em 7 de Novembro de 2019.
Em 23 de Março deste ano, reportagem da Agência CNI de Notícias, pertencente à poderosa Confederação Nacional de Indústria publica: “De volta ao básico: porque o Brasil precisa avançar no saneamento? A matéria estampa uma foto mostrando as péssimas condições de saneamento em uma favela. 
Além disso, o lobby de várias empresas privadas que já atuam no mercado surtiram evidente efeito.
A trajetória da privatização do saneamento no Brasil
O golpista Michel Temer reuniu-se com o presidente da Nestlé, Paul Bucke, em um encontro fora da agenda, no início de 2018. Pouco tempo depois, o governo enviou ao Congresso a Medida Provisória 844, que obrigava os municípios a conceder os serviços para as empresas privadas, mas a medida não foi aprovada. Para obrigar os Estados à privatização, o Governo Temer incluiu no  Programa de Parceria para o Investimento (PPI) a privatização de 17 companhias de saneamento pertencentes aos governos estaduais, que não chegou a ter grandes efeitos. Exatamente no  último dia de mandato, Temer editou a MP 868, cujo conteúdo era o mesmo da anterior. Quando a MP 868 perdeu validade, o senador Tasso  elaborou o Projeto de Lei 3261, de 2019, que, na essência, tinha o mesmo texto da medida provisória. A “nova” lei foi aprovada rapidamente nas comissões e plenário, em junho de 2019, e logo chegou à Câmara (o que mostra os grandes interesses que existem em favor da privatização da água). No entanto, o texto aprovado pelo Senado  foi arquivado pela Câmara, em proveito do PL 4.162/19, de autoria do Executivo. Essa decisão foi tomada sob o argumento de que daria chance à Câmara para que os deputados possam ter a palavra final sobre o marco regulatório. Na verdade, não houve muito debate, e todas as críticas e tentativas dos partidos de oposição de barrar o projeto foram massacradas por um imenso rolo compressor da situação.  O Projeto do Governo Bolsonaro foi aprovado  e enviado ao Senado em dezembro de  2019. Em 24 de Junho  de 2020 o projeto foi aprovado a toque de caixa, em sessão virtual, dispensando o parecer das comissões e com a retirada de todos os destaques. A opinião pública só veio a saber do projeto após a sua aprovação.

O “Modus Operandi” da Privatização  

    A Lei aprovada é de difícil leitura, pois se baseia na reformulação de várias leis que se relacionam com tema do saneamento básico, tornando quase impossível ao cidadão comum opinar sobre a matéria, o que parece ser feito de forma proposital. Outro ponto a ressaltar é a presença constante do Senador Tasso Jereissati na relatoria tanto do projeto do Senado,  de sua autoria, como no projeto enviado pelo Executivo. O senador é proprietário de muitas fábricas de  coca-cola no país, produto que sabidamente consome quantidades imensas de água. Há, portanto, uma intervenção direta das empresas na própria elaboração da legislação, já que a lei aprovada não difere muito do projeto do Senador.
A essência da lei, no entanto, é principalmente o fato de que não se trata de só de estimular ou possibilitar  a entrada da empresa privada no setor de saneamento básico mas , sim tornar obrigatória a privatização das empresas.
A principal novidade introduzida pelo projeto é o fim dos contratos de programa, instrumentos pelos quais os municípios transferem a execução dos seus serviços de saneamento para empresas públicas dos governos estaduais. Os contratos contêm regras de prestação e tarifação, mas permitem que as estatais assumam os serviços sem concorrência. O absurdo que a lei introduz é que a exploração da oferta de água e esgoto só poderá ser decidida como base nas licitações pelos municípios , que deverão obrigatoriamente ter a participação das empresas privadas , além das empresas públicas estaduais.
Os contratos de programa que já estão em vigor serão mantidos, e, até março de 2022, poderão ser prorrogados por 30 anos. Mas a lei passa a estabelecer condições draconianas, como a total viabilidade econômico-financeira, apenas com a  cobrança de tarifas e contratação de dívida. Devem, também, se comprometer com metas de universalização a serem cumpridas até o fim de 2033: cobertura de 99% para o fornecimento de água potável e de 90% para coleta e tratamento de esgoto. Essas porcentagens são calculadas sobre a população da área atendida. Mas essas metas, de acordo  com a lei, podem ser postergadas para até 10 anos depois. E caso haja o interesse em reestatizar, os governos  terão que indenizar as empresas por todo investimento feito.
Outros critérios também deverão ser atendidos, como não interrupção dos serviços, mesmo em caso de não pagamento das tarifas, redução de perdas e melhoria nos processos de tratamento. O cumprimento das metas será verificado periodicamente, e as empresas que estiverem fora do padrão poderão sofrer sanções do órgão regulador. Além disso, elas não poderão distribuir lucros e dividendos.
Um outro aspecto importantíssimo é que, para receber apoio financeiro e técnico da União, os municípios devem privatizar suas estatais de saneamento. Ou seja, o que até hoje era uma possibilidade para estados e municípios, passa a ser uma obrigação. Outra modificação é que a Agência Nacional de Águas (ANA) será a nova reguladora do saneamento básico, cuja colaboração financeira e técnica também está sujeita a adesão dos municípios ao novo sistema. A perversidade do sistema é que a lei acaba com o subsídio cruzado, que permitia reaplicar recursos dos municípios rentáveis para os menos lucrativos, colocando sempre em primeiro lugar  os lucros das empresas privadas. Por isso, existe um alto risco de que a situação permaneça igual ou pior nos municípios mais pobres, e de que o setor privado explore apenas áreas mais lucrativas.
Blocos
Para viabilizar economicamente a prestação para cidades menores, mais isoladas ou mais pobres, o projeto determina que os estados componham grupos de municípios, ou “blocos”, que contratarão os serviços de forma coletiva. Municípios de um mesmo bloco não precisam ser vizinhos. A adesão é formalmente voluntária — uma cidade pode optar por não ingressar no bloco estabelecido para ela e licitar sozinha. Mas dificilmente ela vai fazer isso, pois ficará sem os recursos federais e a assistência técnica que será dada ao Bloco pela ANA (Agência Nacional de Águas).

Papel do Governo Federal

A regulação do saneamento básico do Brasil vai ficar a cargo da Agência Nacional de Águas (ANA), uma agência federal. Os municípios e dos blocos de municípios devem  implementar planos de saneamento básico. A ANA e poderá oferecer apoio técnico e ajuda financeira, desde que o se adira ao sistema de prestação e se faça a   licitação de prestação dos serviços.
As cidades que forem atendidas por estatais que serão privatizadas podem não concordar com a transferência dos serviços para a iniciativa privada. Nesse caso, elas deverão assumir a prestação e pagar indenização por investimentos já feitos que ainda não tenham sido quitados. A lei  ainda torna ilimitada a participação da União em fundos de apoio à estruturação de parcerias público-privadas, de modo a facilitar essa modalidade para os estados e municípios. Até agora, o limite de participação do dinheiro federal nesses fundos é de R$ 180 milhões.
Outros dispositivos
•    Subsídio: Famílias de baixa renda poderão receber subsídios tarifários ou não tarifários para cobrir os custos do fornecimento dos serviços de saneamento para suas residências. Elas também poderão ter gratuidade na conexão à rede de esgoto. Mas esta medidas serão muito restritas, pois a lei exige o equilíbrio econômico-financeiro dos projetos.
•    Lixões: o projeto estende os prazos da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305, de 2010) para que as cidades encerrem os lixões a céu aberto. Os novos prazos vão de 2021, para capitais e suas regiões metropolitanas, até 2024, para municípios com até 50 mil habitantes.
•    Tarifas: os municípios e o Distrito Federal deverão passar a cobrar tarifas sobre outros serviços de asseio urbano, como poda de árvores, varrição de ruas e limpeza de estruturas de drenagem de água da chuva. Se não houver essa cobrança depois de um ano da aprovação da lei, isso será considerado renúncia de receita e o impacto orçamentário deverá ser demonstrado. Esses serviços também poderão integrar as concessões.

As Críticas à Lei e a Rebelião das Águas

    Na verdade, a continuidade dessa política de privatização do saneamento básico está mostrando que há forças poderosas que exigiram do governo a aplicação dessa política e motivou a aprovação pelo Senado, às pressas e em pleno auge da pandemia. O novo marco regulatório do saneamento busca avançar a estratégia de privatização da água no país. Para as empresas transnacionais e bancos, a privatização do saneamento brasileiro está ligada diretamente à tentativa de privatização da Eletrobrás, maior empresa de energia da América Latina, haja visto que se houver a aprovação legal do mercado da água (PL n° 495/17) e a privatização da Eletrobrás, a outorga dos principais rios do país passará para o controle de empresas privadas estrangeiras. Desde 2017, o Senador Jereissati procura aprovar o Projeto de Lei n° 495, que estabelece a criação dos “mercados da água”, prioritariamente em áreas “com alta incidência de conflito pelo uso de recursos hídricos”. O relator da proposta no Senado é José Serra, também do PSDB.  Segundo o texto do PL, o mercado de águas é um “instrumento destinado a promover alocação mais eficiente dos recursos hídricos”, “para priorizar o uso múltiplo e a alocação mais eficiente dos recursos hídricos, bem como para criar os mercados de água”. De acordo com o projeto “os mercados de água são um instrumento de gestão de crises hídricas e funcionam mediante a cessão dos direitos de uso de recursos entre usuários da mesma bacia ou sub-bacia hidrográfica, por tempo determinado”. Na verdade, a venda do direito de exploração da água é a consolidação do projeto neoliberal no trato os recursos hídricos do país. A lógica deixa de ser a necessidade da coletividade e passa a ser a lógica do mercado, ou seja quem puder pagar, como as multinacionais da água,  fica dono de recursos vitais para a humanidade, no caso para nós,  os brasileiros. O planejamento do uso dos recursos hídricos precisa acontecer, mas não com um mercado de água voltado para o agronegócio e as grandes multinacionais do setor, e sim, um Plano de Segurança Hídrica elaborado a partir de um profundo debate com a sociedade.
Quem produz água hoje no Brasil são os pequenos agricultores, são essas propriedades que preservam as nascentes, a floresta, a mata ciliar, são esses os grandes produtores de água. O PLS 495 , ao criar mercados de água,  se preocupa em o acesso aos recursos hídricos para empresas, inclusive as multinacionais, que consomem muito e tem muito dinheiro para comprar a água.
    O maior argumento pela privatização é a ausência de recursos das empresas estaduais de saneamento, já que os Estados estão em situação falimentar, agravada pela queda de receita gerada pela pandemia. Na verdade, as empresas privadas que vierem a assumir o setor de água e saneamento vão poder solicitar empréstimos aos bancos públicos, com juros baixos, com prazo de pagamento longo, sendo que essas linhas de financiamento poderiam e deveriam ser disponibilizadas para as estatais.
O resultado da privatização será  possibilitar a formação de grandes monopólios do setor privado, pois trata-se  de um recurso que não possibilita a “livre concorrência” do seu mercado.   Esses monopólios, por sua vez, vão privilegiar a exploração das regiões mais populosas e de renda média alta, rejeitando a oferta para regiões mais remotas e não-lucrativas.
A privatização dos serviços de saneamento e água tem se mostrado inviável  no mundo e no Brasil, como analisamos no início deste artigo. Grandes cidades como Buenos Aires, Berlim, Paris, Kuala Lumpur e Budapeste, são algumas das mais de 300 ao redor do mundo que decidiram reestatizar serviços hídricos  após constatar  os desastrosos resultados com a privatização. No período de 2000 a 2017, foram 900 reestatizações.
Apesar de extremamente importante, não é muito conhecido no Brasil o episódio intitulado “A guerra da água da Bolívia”, ou “Guerra da água de Cochabamba”, que está ligado ao processo de privatização da água, conforme já analisamos anteriormente.  Os grandes grupos de mídia que dominam a informação, a maioria ligados aos interesses do imperialismo, por razões óbvias, escondem o acontecimento. Entre janeiro e abril de 2000, ocorreu uma grande revolta popular em Cochabamba, a terceira maior cidade do país, contra a privatização do sistema municipal de gestão da água, depois que as tarifas cobradas pela empresa Aguas del Tunari (pertencente ao grupo norte-americano Bechtel) dobraram de preço, o que acarretou terríveis consequências para a população, já extremamente pobre.

Em 8 de abril de 2000, Hugo Banzer ,  general e político de extrema direita que tomou o poder na  Bolívia através de um golpe de Estado, declarou estado de sítio. A repressão violenta se abateu sobre o movimento e a maioria dos líderes do movimento foram presos, assim como várias estações de rádio foram fechadas. Mas a população não recuou e continuou se manifestando vigorosamente, apesar da grande repressão. Em 20 de abril de 2000, com o governo percebendo que o povo não iria ceder, o general desistiu da privatização e anulou o contrato vendilhão de concessão de serviço público, firmado com a Bechtel. A intenção do governo era celebrar um contrato que iria vigorar por quarenta anos. Graças à mobilização da população, a Lei 2.029, que previa a privatização das águas do país, foi revogada.  Tudo começou com a exigência do Banco Mundial de que se fizesse a privatização, como contrapartida da negociação da dívida externa do país, de 25 milhões de dólares.
     De agora em diante as forças populares e democráticas no país tem o dever de começar a nossa Guerra das águas e , num prazo de tempo menor possível, revogar essa lei do Governo Bolsonaro, que , como outros atos desse governo criminoso e fascista, certamente deverá resultar em grandes prejuízos para nossa infraestrutura de saneamento básico e para a própria soberania nacional.
O tema deve ser incluído e talvez até se tornar o centro do debate das eleições municipais, já que os municípios serão os principais atingidos por essa radical mudança do marco regulatório do saneamento básico do país.

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